sábado, 15 de maio de 2010

Qual é, afinal, o alcance da reserva da reserva constitucional da jurisdição administrativa?

Plano do Trabalho

1. Introdução
2. A Constituição Portuguesa do Processo Administrativo;
3. Os tribunais administrativos só podem julgar questões de direito administrativo, segundo a nossa Constituição?
4. Só os tribunais administrativos podem julgar questões de direito administrativo, segundo a nossa Constituição?
5. Brevíssimas notas sobre a delimitação legal do âmbito da jurisdição administrativa – ETAF;
6. Conclusões

1. Introdução

No texto que se segue, tentaremos perceber qual é afinal o alcance da reserva constitucional da jurisdição administrativa, formulando, nesse sentido, duas perguntas. Primeiramente, vamos indagar sobre a possibilidade dos tribunais administrativos poderem julgar mais questões, para além daquelas que se relacionem com o direito administrativo. Em segundo lugar, procuraremos dar resposta à possibilidade de outros tribunais, para além dos administrativos, poderem julgar questões de direito administrativo, à luz da nossa lei fundamental. Considerámos ainda pertinente, traçar umas brevíssimas notas sobre a delimitação infraconstitucional, quer dizer, sobre a delimitação legal do âmbito da jurisdição administrativa, atentando no disposto no artigo 1º e no artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Ainda, num momento prévio, faremos alusão ao que o Professor Vasco Pereira da Silva designa de “A Constituição Portuguesa do Processo Administrativo”, referindo o processo e a direcção de constitucionalização do Processo Administrativo, realidade a que dispensaremos algumas notas, necessariamente sintéticas, tendo em conta a índole do trabalho a que nos propomos.

2. A Constituição Portuguesa do Processo Administrativo;

Tal como anota o Professor Vasco Pereira da Silva, a nossa Constituição, estabelece um Contencioso Administrativo jurisdicionalizado e destinado à tutela plena e efectiva dos direitos dos particulares nas relações jurídicas administrativas, conforme se constata da observação do artigo 268º nºs 4 e 5 e dos artigos 202º e seguintes, da nossa lei fundamental. O processo de constitucionalização do processo administrativo, ocorrido em Portugal, não foi caso isolado no contexto internacional, inserindo-se num movimento europeu de constitucionalização do contencioso administrativo, que ocorre no último quartel do século XX, e que em Portugal, se sintetiza na ideia de elevação constitucional da garantia de controlo jurisdicional da Administração, por um lado, e por outro pela consagração de diversos direitos fundamentais relacionados com o Processo Administrativo, tais como a consagração do direito de acesso à Justiça Administrativa.
O Professor Vasco Pereira da Silva, na sua Obra “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise” explicita os avanços que são dados nas múltiplas revisões constitucionais, em sede de, passe o pleonasmo, constitucionalização do contencioso administrativo, muito embora considere que é apenas com a reforma de 2004, que se dilui o conflito entre o modelo constitucional do Contencioso Administrativo e a concretização legal que lhe é dada. Não cumpre no entanto, sob pena de nos desviarmos do tema central da nossa exposição, ser exaustivos nesta matéria. Assim, após este primeira nota prévia, devemos passar de imediato às duas questões centrais: Primeiro, se os tribunais administrativos só podem julgar questões de índole administrativa, em segundo lugar, se a competência para julgar questões de matéria administrativa é exclusiva desses tribunais administrativos.

3. Os tribunais administrativos só podem julgar questões de direito administrativo, segundo a nossa Constituição?

Antes de mais, cumpre olhar para o preceito legal, que motiva toda esta discussão, o artigo 212º nº3 da nossa lei fundamental: “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.”. Será que à luz desta disposição constitucional, os tribunais administrativos só podem julgar questões relativas a relações jurídicas administrativas ou fiscais? Será que é aqui consagrada uma reserva material absoluta, desde logo, no sentido dos tribunais administrativos estarem vinculados a dirimir apenas relações que emerjam de relações jurídicas administrativas ou fiscais?
Num período posterior à revisão constitucional de 1997, a propósito dos tribunais militares, é redigida a lei 105/2003, que dá execução legal à norma constitucional prevista no (agora) 212º da Constituição, consagrando-se que os tribunais militares apenas poderiam ser criados em estado de guerra e estritamente para julgarem crimes de natureza especificamente militar. Por outro lado, ainda a propósito dos tribunais militares, tal como refere o Professor Vieira de Andrade, era possível perceber que a jurisprudência do Tribunal Constitucional apontava no sentido da qualificação dos tribunais militares, como tribunais especiais, adstritos a julgarem as questões que lhe fossem atribuídas por via constitucional, cabendo aos tribunais comuns (judiciais) exercer a jurisdição nas áreas não afectas aos tribunais especiais, consagrando-se por esta via, uma reserva negativa ou de exclusão aplicável aos tribunais judiciais, tal como anota o Professor Vieira de Andrade. Assim, no sentido do que foi decidido no acórdão de 10/5/94, em que o STA desaplicou o Regulamento do Serviço do Registo de Imprensa que atribuía aos tribunais administrativos a competência para julgar os recursos contra as decisões do Director-Geral da Comunicação Social sobre recusa de registo de título de publicação periódica (muito embora, em 95, o Tribunal Constitucional tenha vindo a qualificar os actos em causa, como actos administrativos e nessa medida infirmando a decisão do STA), era o entendimento jurisprudencial, de que seriam inconstitucionais todas as leis que atribuíssem aos tribunais administrativos e fiscais a possibilidade de dirimirem conflitos que não fosse emergentes das relações administrativas.
Contudo, mesmo no ano de 1994, mas sobretudo nos anos posteriores, tanto a doutrina como a jurisprudência começaram a considerar que não violava a constituição a atribuição de competência aos tribunais administrativos e fiscais no que se refere a relações com aspectos de direito privado, desde que, se remetessem para a actividade da Administração Pública. Quanto a nós, adiantando já o que diremos infra, no ponto de Conclusões, parece-nos que estamos em presença de um caso em que o direito foi ao encontro da realidade, foi obrigado a adaptar-se à praxis, na medida em que, com o crescimento exponencial da utilização dos mecanismos de direito privado utilizados pela Administração no exercício da função administrativa, obrigou a que o Direito fosse obrigado a rever em termos extensivos a disposição constitucional sub judice. É neste sentido também, que vai a reforma da Justiça Administrativa.
Assim, num primeiro ensaio de resposta à primeira pergunta formulada, parece-nos correcta a afirmação de que os tribunais administrativos e fiscais podem dirimir conflitos que respeitem a relações que incluam aspectos de direito privado ou para julgar a responsabilidade civil extracontratual por actos da gestão privada da Administração, enfim, remete-se para um critério funcional, como já foi dito, em que os tribunais administrativos e fiscais são competentes para a resolução de litígios referentes à actividade da Administração, à função administrativa.

4. Só os tribunais administrativos podem julgar questões de direito administrativo, segundo a nossa Constituição?

No que concerne a esta segunda questão, a controvérsia é maior. Assim, tal como regista, o Professor Vieira de Andrade, enquanto para alguns autores, resulta da nossa lei fundamental, uma reserva segundo a qual o legislador não poderia atribuir a outros tribunais, nomeadamente os tribunais judiciais, o julgamento de litígios materialmente administrativos (a menos que estivéssemos em presença de uma devolução de competência constitucionalmente consagrada, como é o caso da atribuição à jurisdição constitucional do contencioso eleitoral), como é o caso de Vital Moreira, Gomes Canotilho ou Mário Esteves de Oliveira, para outros autores, dos quais avultam Diogo Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, admitem que o legislador remeta para a jurisdição comum questões emergentes de relações jurídicas administrativas, designadamente quando estejam em causa direitos fundamentais dos cidadãos, na medida em que, na opinião destes autores, a falta e meios e insuficiência de tribunais administrativos, leva a que a jurisdição administrativa fosse incapaz, ou tivesse, pelo menos, muito mais dificuldades para assegurar uma tutela judicial efectiva, em sede de resolução de conflitos relativos aos direitos fundamentais.
O Professor Sérvulo Correia acrescenta uma outra ideia, considerando a que definição sub judice, deve ser entendida como uma garantia institucional, para o legislador ordinário, tendo somente que respeitar o núcleo essencial da organização material das jurisdições, sendo, por exemplo, inconstitucional, a remissão para os tribunais judiciais de todas as questões relativas a direitos subjectivos dos particulares. Neste quadro, tal como anota Vieira de Andrade, deve ser o órgão competente (Assembleia da República) para legislar sobre competência dos tribunais, salvo autorização legislativa ao Governo nos termos do 165 nº1 p), a estabelecer um desvio a esta ordem constitucional típica. Enfim, estaríamos em presença de uma regra geral, mas não perante uma reserva material absoluta. Com efeito, fica proibida uma descaracterização da jurisdição administrativa, enquanto jurisdição principal em matéria de relações administrativas, não sendo, no entanto, proibida a atribuição a outros tribunais, desde que excepcionalmente, de questões substancialmente administrativas, admitindo-se a razoabilidade dessa remissão orgânica, por motivos diversos, que redundam, como lembra o Professor Vieira de Andrade, na liberdade constitutiva própria do poder legislativo.
Assim, parece que à questão em apreço, deve ser dada resposta negativa, considerando-se que, os tribunais administrativos são os tribunais comuns em sede de relações administrativas, não obstante, em situações excepcionais, poder ser atribuída a outra jurisdição a competência para dirimir conflitos emergentes das referidas relações de índole administrativa.

5. Brevíssimas notas sobre a delimitação legal do âmbito da jurisdição administrativa – ETAF;

O âmbito da justiça administrativa, não se determina apenas no plano constitucional, pelo contrário, a sua materialização sucede também no plano infra constitucional, ou melhor, no plano legal. Não cumpre, tendo em conta a índole deste trabalho e o cariz sintético que lhe deve ser conferido, explanar em demasiado essa vertente, não obstante de, ser conveniente traçar algumas notas caracterizadoras sobre esta temática. Em termos sistemáticos, optámos por fazer uma análise à letra da lei, do artigo 1º e do artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais:

 O artigo 1º, nº1, repete, basicamente, a fórmula postulada na nossa lei fundamental, afirmando que os tribunais administrativos e fiscais são os órgãos de soberania competentes para julgar os conflitos emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, concluindo o nº2, desse mesmo artigo, que os tribunais administrativos e fiscais não podem aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição da República Portuguesa, nem os princípios nela consagrados. Enfim o ETAF vem reafirmar a cláusula geral estabelecida na Constituição da República Portuguesa.

 Quanto ao artigo 4º, é possível extrair da sua análise uma perspectiva histórica do próprio contencioso administrativo, na medida em que as últimas alíneas parecem resolver problemas que se colocaram muito mais recentemente, para além de, regra geral, se reportarem a problemas mais específicos. O artigo 4º, basicamente, tem uma enumeração positiva e uma enumeração negativa, a que se referem os litígios cuja solução compete ou não compete aos tribunais administrativos, circunstância que permite eliminar algumas dúvidas e determinar de forma mais exacta o âmbito da respectiva jurisdição, tal como anota, o Professor Vieira de Andrade. Contudo, resta lembrar que as enumerações são exemplificativas e que não é possível uma identificação de todos os litígios ou a sua classificação exaustiva, utilizando-se conceitos indeterminados.

 Enfim, fica uma síntese de uma análise pela delimitação legal da jurisdição administrativa, em especial, nos aspectos de maior ligação com o plano constitucional. Seguem-se as nossas conclusões.

6. Conclusões

Em jeito de conclusão, cumpre apenas sistematizar aquilo que fomos dizendo, ao longo deste texto. Parece-nos, efectivamente, que as respostas às duas questões que formulámos deve ser de cariz negativo, concluindo-se, que o alcance da reserva constitucional da jurisdição administrativa é limitado. Em primeiro lugar, essa limitação decorre, porque os tribunais administrativos e fiscais, embora tenham a incidência da sua acção nas questões advindas de relações administrativas, podem, dirimir conflitos emergentes de relações com aspectos privados ou relacionadas com actos de gestão privada da Administração, colocando-se a tónica, numa perspectiva funcional, ou seja, os tribunais administrativos e fiscais julgam as questões relacionadas com a actividade administrativa, com a acção da Administração na sua função administrativa. Por outro lado, a limitação sucede igualmente, porque podem outros tribunais, que não os tribunais administrativos e fiscais, julgar questões de índole administrativa e fiscal, quer dizer: A regra geral é a de que os tribunais competentes para dirimir conflitos que emerjam das relações administrativas, são os tribunais administrativos e fiscais. Contudo, esta regra geral é excepcionada por casos particulares em que é possível que outros tribunais, nomeadamente, os tribunais judiciais sejam chamados a resolver conflitos que emerjam de relações administrativas.
Por outro lado, desde logo são atribuídas pela Constituição à jurisdição constitucional, competências de índole administrativa, pelo que, também por aqui, a reserva constitucional da jurisdição administrativa, será sempre uma reserva mitigada (a este propósito, como exemplos, o artigo 223º nº2 c) da CRP, sobre julgamento de certos processos em matérias eleitorais, o 281º nº1 a) c) e d) sobre a possibilidade de declaração com força obrigatória geral da inconstitucionalidade ou ilegalidade de normas administrativas com fundamento em violação directa da Constituição ou de estatutos regionais e ainda, por exemplo, questões de legalidade financeira nos termos do disposto no artigo 214º da lei fundamental.
Terminamos portanto o trabalho, inclinando-nos por dar uma resposta negativa à questão proposta, considerando que o alcance da reserva constitucional da jurisdição administrativa é relativo.

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