sexta-feira, 21 de maio de 2010

Modelo francês



Os tribunais administrativos franceses continuam muito ligados ao executivo, o que é um traço do contencioso oitocentista, embora, como veremos adiante, seja um modelo que prossegue os valores e princípios actuais como o da jurisdição plena e efectiva. Esta concepção do contencioso administrativo decorre da permissa de que para se poder julgar bem, o juiz deve conhecer bem a Administração, o que na prática corresponde a uma experiência na administração activa antes de se ser juiz. O processo de recrutamento dos magistrados tem, em França, a particularidade de ser feito com recurso da École Nationale d’Administration e não tanto da École Nationale de Magistrature, o que é um aspecto paradigmático e diferenciador deste sistema.
A Administração francesa tem um instrumento chamado privilégio da decisão executória, que “não é mais” do que, através de um acto unilateral, impôr aos particulares deveres ou sujeições e conferir-lhes direitos sem o consentimento dos próprios e sem intervenção de um juiz. Os particulares podem reagir contra este tipo de decisões através da figura do recurso por excesso de poder. É a acção pela qual o interessado pede a anulação de um acto unilateral e ilegal da Administração. Este é outro traço que ilustra e que marca a diferença do modelo francês, já que chamar recurso ao primeiro meio processual para reagir contra um acto, uma decisão, não de um tribunal mas da Administração activa é estabelecer, em termos linguísticos, uma próximidade entre a o poder executivo e o poder judicial. O princípio da separação de poderes serve, não para atacar esta concepção mas antes para o justificar, pois exige a separação, rígida até meados dos anos 90, entre o juiz e a administração activa no desempenho das funções de julgar. Esta lógica possibilitou a criação do princípio geral da proibição das injunções do juiz administrativo à Administrção activa, por parte da jurisprudência do Conseil d’État, o que restingiu a tutela juriscdicional efectiva, como veremos, e foi uma das causas de uma crise que o contencioso administeativo francês atravessou.
Foi o Conseil d’État que teve o papel criativo ao longo dos tempos, já que as inovações verificadas até aquele momento de crise ficaram a seu cargo. Durante essa fase, o Conseil Constitutionnel ganhou maior prestígio e protagonismo, o que por consequência fez com que o as normas Constitucionais ganhassem outra força dentro do âmbito administrativo, nomeadamente, no contencioso administrativo. O Conseil d’État apoiava-se em princípios gerais do direito sem se atrever a aferir da conformidade das actuações face à Constituição.
Outro factor que era causa do momento de crise vivido pelo contencioso administrativo francês era a “fuga” para os tribunais judiciais, por parte dos administrados, em conflitos jurídico administrativos, que era uma prática com antecedentes históricos, mas que contribuiu para este período. Dessa tradição histórica resultou o princípio da teoria da via de facto, que permitia que os tribunais judiciais tivessem competênciapara julgar litígios emergentes da via de facto quando lese uma liberdade fundamental ou direito de propriedade. Embora não fosse uma competência exclusiva dos tribunais judiciais, os particulares tinham preferência por esta jurisdição, que dispunha de meios mais eficazes para fazer cessar a conduta administrativa ilegal. Acresce a tudo isto o facto, cada vez mais importante, de o TEDH fazer uma interpretação do artigo 6º da CEDH no sentido de uma tutela jurisdicional efectiva, de uma tutela contra uma Administração que lese ilegalmente um direito. É importante referir que o TEDH não restringe a forma de se alcançar esta tutela jurisdicional efectiva.
A crise acaba, ou pelo menos há uma mudança relevante quando, em meados da década de 90 do século passado, se procedeu a alterações legislativas, em que o tribunal passa a poder aplicar uma medida de execução na sequência de um pedido feito nesse sentido e, complementarmente, poder aplicar uma sanção pecuniária compulsória. Outra alteração marcante foi o tribunal poder ordenar a uma pessoa colectiva de direito público, ou um organismo privado encorregado da gestão de um seriço público, para que profira nova decião, na sequência de um pedido feito, aplicando complementarmente sanção pecuniária compulsória. Esta medida legislativa reforça o respeito pelo caso julgado, as injunções mencionadas acima deixaram de ser proibidas embora devam ser requeridas pelos interessados o que, globalmente, confere ao princípio da tutela efectiva uma maior dimensão.
O Conseil d’État, bem como os restantes tribunais administrativos, acolhem definitivamente o primado do Direito Constitucional e passam a interpretar as leis conforme a Constituição, o que contribuiu para que os princípios consagrados na CEDH fossem efectivamente aplicados no contencioso administrativo francês, sem o relevo daquela interpretação rígida do princípio da separação de poderes que fazia o Conseil d’État. Hoje em dia o Conseil d’État teve cada vez mais em atenção os princípios processuais do TEDH, e em geral o Direito Europeu tem uma preponderância crescente na vida do tribunais administrativos, sem pôr em causa as particularidades do modelo francês.

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