domingo, 16 de maio de 2010

Do Recurso Hierárquico (des) Necessário- Biografia comentada

Recurso Hierárquico necessário, é conforme diz o nome um recurso, i.é um meio gracioso, que de gracioso tem muito pouco, a que os administrados recorrem para inpugnar decisões administrativas que, a priori, lhes são desfavoráveis. É Hierárquico, uma vez que se recorre para os Superiores Hierárquicos do órgão que emitiu o acto administrativo, ou para qualquer outro órgão administrativo com poderes para superintender o órgão ad quo. É também, ou era, “necessário” na medida em que o administrado não poderia recorrer aos meios contenciosos, sem antes esgotar as instancias em sede de recursos hierárquicos. A tutela judicial estava negada a quem não tivesse anteriormente impugnado hierarquicamente o acto em causa, o mesmo é dizer, tinha “necessariamente” que intentar um recurso hierárquico, necessário, lá está.
A figura do recurso hierárquico NECESSÁRIO constava da Constituição de 76 na sua
sua versão original, ainda que de forma velada, ora veja-se, o que a Constituição dizia era que o direito de recurso contencioso contra actos administrativos definitivos e executórios, é esta a célebre definição do não menos célebre e genial Professor Doutor Marcello Caetano, e que dava azo à também muito célebre dicotomia recurso gracioso necessário versus facultativo.
E esta noção de uma recurso sine qua non da impugnação contenciosa tinha as suas razões de ser, e uma certa utilidade uma vez que possibilitava ( e possibilita) aos administrados atacar actos praticados por um órgão administrativo perante o autor do acto, superior hierárquico ou quaisquer outros órgão com poderes para superintender o órgão ad quo, aqui reside a maior, e talvez a única vantagem do recurso gracioso.
Eis que em 1989, data da 2ª revisão constitucional o legislador constituinte vem, omitir do artigo 268º expressões como “definitividade e executoriedade”, ora estas duas expressões eram, e são, o pai e a mãe do recurso hierárquico necessário, que em 1989 parece ficar órfão, de pai e mãe.
Este facto constitui o ponto de viragem para o contencioso administrativo, a passagem da idade das trevas para a luz - o renascimento, o que antes girava em torno de uma figura obscura e contestável: o acto administrativo, passa a girar em torno de um figura iluminada e ainda mais contestável (e falível): o sujeito.
A doutrina fervilhante de ideias Alemãs muito se pronunciou sobre o assunto, chegando, N.O a um entendimento (mais ou menos) consensual: O acto administrativo é contenciosamente impugnável desde que seja “lesivo” para o particular. A característica da lesividade passa, desde então, a pertencer ao acto administrativo, constituindo a superação de um conhecido trauma de infância para o contencioso administrativo.
Concretizemos então o que disse, cada um dos doutores que sobre este tema dissertaram.
O Professor Vasco Pereira da Silva, acérrimo defensor da reforma do contencioso pós-traumático veio a entender que o recurso hierárquico necessário passou, a partir da revisão constitucional de 1989, a ser inconstitucional, i.é, o recurso hierárquico, necessário, padece de uma inconstitucionalidade superveniente em razão desta alteração ao artigo 268ª, de facto parece argumento suficiente o de que o legislador constitucional não “aniquilaria” os progenitores do recurso hierárquico necessário a seu belo prazer para que, no fim, tudo se mantivesse igual.
Mas o Professor Vasco Pereira da Silva avança com argumentos de ordem jurídica, nomeadamente o facto de a exigência de um recurso hierárquico para que o particular possa impugnar contenciosamente o acto administrativo que lhe é lesivo constituir uma violação manifesta do artigo 268º, epígrafado de “ Direitos e garantias dos administrados”. Este artigo 268ª prevê no seu número 4 que “é garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva”. Ora se o administrado tem de “esperar” por uma impugnação administrativa que pode durar 1 ano ou mais, para além de não ter uma tutela jurisdicional efectiva não tem um “acesso directo aos tribunais”, conforme preceitua o artigo 59º nº 5, do CPTA.
Mas a inconstitucionalidade da exigência de um recurso hierárquico “necessário” contraria ainda outros preceitos constitucionais, no entendimento do Professor Vasco Pereira da Silva, tais como o 114º,o 205º e o 266º, que mais não são do que materialização do princípio da separação entre a Administração e Justiça, cuja bisada e perene violação constituiu o principal culpado da “infância traumática” do Contencioso Administrativo, no seu berço, França.
O artigo 51º/1 do CPTA, vem comprovar o que se diz infra e supra, consagrando a impugnabilidade contenciosa de qualquer acto administrativo que seja susceptível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares, ou que seja dotado de eficácia externa.
Por outro lado, também o artigo 59º no seu número 4 constitui um sério indicio de que de facto o entendimento defendido por Vasco Pereira da Silva, nosso ilustre mestre tem acolhimento legal, já que prevê que “ a suspensão do prazo para a impugnação contenciosa não impede o interessado de proceder à impugnação, bem como de requerer a adopção de providências cautelares.” Ou seja o administrado pode, ao mesmo tempo, recorrer administrativa e contenciosamente do acto que lesou os seus interesses, o que significa que, de facto, o recurso hierárquico não é pressuposto processual para Impugnação contenciosa.
Deste modo, assistimos a um desdobramento da garantia constitucional de acesso à justiça administrativa em dois direitos fundamentais: o recurso de anulação (268º/4) e 268º/5. Assistiu-se à consagração na lei fundamental do principio da protecção jurisdicional plena e efectiva dos particulares.
E assim começa a ruína do império gaulês do actocêntrismo ( para uma parte do “mundo”).
A outra parte do mundo, acredita que o recurso hierárquico necessário é ainda um pressuposto necessário da impugnação contenciosa.
Faz parte da outra parte do mundo , Mário Aroso de Almeida que rejeita a tese de
Inconstitucionalidade propugnada pelo Prof. Vasco Pereira da Silva, usando, para tanto os seguintes argumentos: o professor defende que o CPTA não tem alcance para revogar as múltiplas determinações legais avulsas que instituem impugnações administrativas necessárias e que não cabe à Constituição da República Portuguesa estabelecer os pressupostos de que possa depender a impugnação contenciosa de actos administrativos.
Ora, vejamos então. O CPTA, aprovado pela Lei 15/ 2002 é, antes de mais, uma lei ordinária, do mesmo modo que são também leis ordinárias as que especialmente dispensam a impugnação administrativa necessária. Assim, desde que os diplomes extravagantes sejam posteriores ao CPTA derrogam-no, segundo o principio- Lei ordinária posterior revoga lei ordinária anterior.
Quanto ao argumento da não legitimidade da Constituição da República Portuguesa para determinar os pressupostos da impugnação administrativa parece-nos ainda mais inverosímil. A CRP é a Lei Fundamental do Estado, estando esta no vértice da pirâmide da jerarquia de leis, encerrando em si toda a legitimidade democrática e ontológica para legislar sobre qualquer assunto, ainda mais do foro administrativo.
Também o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva se pronuncia, a cerca da controvertida posição do Prof. Mário Aroso de Almeida, refutando, naturalmente, esta tese. Diz-se nesta tese que o CPTA revogou apenas a regra geral do recurso hierárquico necessário, mantendo-se a regras especiais, mas, na verdade, diz Vasco Pereira da Silva, se assim fosse as regras especiais, antes da reforma, de especiais não tinham nada, e só serviriam, nesse caso, para confirmar ou reiterar a regra geral, pelo que se devem considerar revogadas pela revogação da regra geral.
Em nosso entender a argumentação do Professor Vasco Pereira da Silva, em antítese, procede, comungamos do seu entendimento.
Á laia de conclusão restará, para que toda esta controvérsia não passe por uma refrega académica sem sentido prático útil, analisar o acórdão 0701/09 de 11/03/2010.
O referido Acórdão retrata uma situação em que temos um particular, doravante o A., funcionária da Câmara que pretende impugnar um despacho do Presidente da Câmara Municipal da Figueira da Foz, que indeferiu a reclamação do acto homologatório da avaliação do desempenho apresentado por A., e que para tal, intenta uma acção no Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, o Tribunal decidiu que o acto ( o despacho) era inimpugnável, esta decisão veio a ser confirmada pelo Tribunal Central Administartivo do Norte. Estas duas decisões vêm considerar que a reclamação teria um carácter facultativo, não podendo constituir pressuposto necessário para o impulso processual. Por outro lado o Tribunal vem considerar que o despacho de indeferimento não seria nunca impugnável por não constituir per se um acto lesivo, sendo que, só o primeiro acto, o acto homologatório da avaliação de desempenho da funcionária é que seria o acto lesivo, e, portanto, impugnável. A. inconformado com a decisão do Tribunal vem interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo. Este vem, por seu, turno chegar a uma solução semelhante ainda que com diferente fundamento: “O art.º 51, n.º 1, do CPTA, introduzindo um novo paradigma de impugnação contenciosa de actos administrativos lesivos, convive
com a existência de impugnações administrativas necessárias, não só quando a lei o disser expressamente, como também em todos aqueles casos, anteriores à vigência do CPTA, que contemplavam impugnações administrativas, previstas na lei, comummente tidas como necessárias.
Deste modo, a regra geral contida naquele preceito sera inaplicável sempre que houver determinação legal expressa, anterior ou posterior à sua entrada em vigor, que preveja a necessidade de impugnação administrativa como pressuposto da
impugnação contenciosa.
Sendo assim, e sendo que no procedimento para avaliação do desempenho regulamentado pela Lei n.º 10/04 e pelos Decretos Regulamentares n.º 19-A/04 e n.º 6/06 está prevista a existência de reclamação, à qual se seguirá recurso hierárquico, e sendo que estes diplomas são posteriores à entrada em vigor do CPTA é
forçoso concluir que a reclamação neles prevista é necessária.”


“ É uma estranha empresa, essa de fazer rir as pessoas de bem”
Moliére

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