sexta-feira, 21 de maio de 2010

Levando o acto confirmatório a sério

Levando o acto confirmatório a sério[1]

Pedro Santos Azevedo

Parte I

Estudar a impugnação de um acto confirmatório implica primeiro compreender os caracteres distintivos do conceito, para que, face a novas situações, de facto ou de direito, possamos enquadrá-las ou não nesta realidade[2]. E compreendê-lo de forma não isolada, estudando sim a sua parte dinâmica ou relacional, nomeadamente o modo como este se liga ao acto confirmado – saber se faz parte dele, se é um acto diverso, etc. A forma como se resolva esta questão, a par daquilo que se considere poder ser subsumido ao conceito de acto confirmatório, ditará importantes consequências no tocante ao acesso aos tribunais por parte dos particulares.

Podemos começar por fazer um paralelo com as normas primárias e secundárias de Hart – um acto confirmativo é um acto cujo quid sobre que recai é pertencente ao mundo jurídico, ao mundo deôntico, e não ao mundo fáctico[3]. Percebe-se, portanto, intuitivamente, que os seus efeitos ocorrerão sobre a ordem jurídica, e apenas – e eventualmente – de modo mediato no mundo do ser (recorde-se a partição, celebrizada em Kelsen[4], do Sein und Sollen).

Comecemos, cumprindo a praxis, por um pequeno enquadramento doutrinal e comparado, que consubstancia a Parte I do nosso trabalho.

O também chamado acto confirmativo é, na definição de Freitas do Amaral, o acto administrativo pelo qual um órgão da Administração reitera e mantém em vigor um acto administrativo anterior. Os dois exemplos que o referido autor enuncia são casos de recursos, ou de insistência num mesmo pedido, ou seja, casos em que o acto confirmativo é movido por uma insistência do particular[5].

Como locus comum temos a reapreciação duma situação. O que não é despiciendo, dado que daqui parece retirar-se que um acto confirmativo só o é desde que é emitido: isto é, potencialmente poderia ser um acto diferente - um acto correctivo; um acto revogatório; um qualquer outro genus que não o confirmatório, dado que o que foi pedido foi uma espécie de reapreciação de uma situação. E parece ser a circunstância de apontar para o mesmo sentido do acto anterior que o torna confirmatório, e não uma qualquer característica sua, intrínseca, ou derivada de um específico procedimento. O que, em termos práticos, significa um problema: a impugnação dum acto preparatório que um acto ainda não emitido que poderá vir a ser confirmatório é já a impugnação dum acto confirmatório, sendo que este ainda não existe como tal? Isto é, poderá ser confirmatório; poderá não o ser.

Além dos exemplos apontados pelo autor, podem existir também actos semelhantes a estes em casos em que a lei obriga a um acto confirmativo. Veremos depois se estes actos são realmente confirmativos ou não.

Aroso de Almeida[6] rejeita aos actos confirmativos o carácter de verdadeiras decisões e, portanto, diz não estarmos perante verdadeiros actos administrativos[7], mas perante declarações enunciativas que não podem ser reaproveitadas para abrir um litígio. Se não nos inclinamos para concorar com o início da afirmação, já a parte final afigura-se-nos correcta: a função útil de um acto confirmativo – seja ou não considerada um acto administrativo - não pode ser apenas a de o poder utilizar para uma impugnação. Tem de existir algum fundamento para tal. Importa também a qualificação do acto no sentido de produzir ou não efeitos jurídicos. Mesmo que se configure como uma decisão, mas se defenda que não são produzidos efeitos jurídicos, não estamos perante um acto administrativo[8].

Quanto a nós, pensamos estar perante uma verdadeira decisão – na pior das hipóteses, a decisão de que outro órgão decisor entende o mesmo que o primeiro órgão, dando segurança ao primeiro órgão decidendo e ao particular; em termos de efeitos jurídicos, estes existem, pelo menos processualmente: o facto de este acto ter sido emitido permite a impugnação do mesmo em certas situações, pelo que terá pelo menos esse efeito jurídico[9]. E mais: se é permitida a impugnação, parece dever este ter algum efeito pelo qual é impugnado. Como referimos acima, não vemos fundamento num acto cujo único conteúdo útil seja uma abertura para uma impugnação, um título de impugnação abstraído de todo o mundo real.

Para a análise comparada do sistema alemão (e austríaco, na mesma senda) socorremo-nos da dissertação de doutoramento de Vasco Pereira da Silva[10] que nos diz que a referida doutrina (seguida, entre nós, de certo modo, por Rogério Soares e Sérvulo correia), considera que estes “actos” não são actos administrativos, porque não são recorríveis. Assim, o conceito de acto seria restrito àqueles actos dos quais se pode recorrer, o que configura uma visão algo inversa do habitual: são características processuais que caracterizam (ou, até, definem!) algo enquanto acto ou não, e não a caracterização enquanto acto ou não que determina algumas consequências processuais, tais como a impugnabilidade.

De qualquer modo, parece-nos que estes autores falam em susceptibilidade de recurso (em algum momento da vida do acto), e não possibilidade real e actual de recurso – caso contrário, um acto face ao qual já não fosse possível recorrer (por ter passado o prazo de impugnação, por exemplo) deixaria de ser um acto administrativo.

À questão que levantámos responde, de certo modo, Viera de Andrade[11] no seu manual, referindo que “o conceito processual de acto administrativo impugnável é diferente do conceito de acto administrativo sendo, por um lado, mais vasto, e por outro, mais restrito”. É mais vasto porque não depende da qualidade administrativa do seu autor. É mais restrito porque apenas abrange decisões administrativas com eficácia externa. Diz depois que os actos confirmativos nem seriam verdadeiros actos. E diálogo hipotético com o referido autor, Engisch[12] defenderia estarmos perante uma contradição no sistema, nomeadamente na modalidade d contradição de técnica legislativa por falta de uniformidade na terminologia adoptada por lei. Já Grünhut diz que “a ordem jurídica exige uma variação individualizante dos conceitos com vista à sua adaptação ao sentido particular da determinação do Direito em concreto

Já em 1984 a doutrina revelava vários actos confirmatórios por baixo dum aparente aglomerado homogéneo: Esteves de Oliveira[13] escreve que por trás da habitual capa dos actos confirmativos - a saber, actos que coincidem com um acto anterior contenciosamente impugnável e, portanto, inimpugnáveis - se escondem várias realidades.

Ao contrário de Marcello Caetano e, na sua esteira, da doutrina e jurisprudência, este autor considera que não é por estes actos serem não executórios que são inimpugnáveis (dado que esta doutrina os considera definitivos) mas sim por não definirem situações jurídicas dos particulares – por não serem definitivos, portanto. Actualmente a questão já não se prende tanto aí quanto com a lesividade do acto, apesar da ainda grande influência na jurisprudência. Após a análise das diversas realidades, conclui que o acto confirmativo pode ser objecto de impugnação, abrangendo também o acto confirmado, e que a impugnação do acto confirmado deixa intocado o confirmativo. O que nos leva a indagar o que acontece a um acto sem substrato.

Rui Machete[14] diz que “se podemos situar o fundamento último do acto confirmativo na preocupação de garantir a estabilidade dos actos e relações jurídicas, de um ponto de vista mais próximo a explicação da figura reside na necessidade de fazer respeitar a peremptoriedade dos prazos de impugnação judicial dos actos administrativos”. Acrescenta ainda que “aceitar que nova resolução administrativa, exactamente idêntica à anterior já tomada, pudesse ser objecto de recurso contencioso, traduzir-se-ia no alongamento indeterminado dos prazos previstas para a impugnação”.

Considera que existem actos confirmativos que se limitam a rejeitar o novo pedido de apreciação do particular porque já foi objecto de apreciação anterior; e os actos que resultam de um reexame do pedido. Na altura da obra, consideravam-se ambos irrecorríveis, sendo que em França e Itália os do segundo tipo eram recorríveis.

Entre nós, Sérvulo Correia[15] dá conta de algumas opiniões quanto a estes actos. MarcelloCaetano incluía os actos confirmativos entre os actos não executórios típicos. A definição, semelhante ao resto da doutrina, termina com o seguinte trecho: “sem que o reexame dos pressupostos decorra de revisão imposta por lei”. Parece, a contrario, que caso a revisão seja imposta por lei não podemos falar já de actos confirmativos. Esta questão joga com a que anteriormente colocámos, mas que agora podemos avançar com mais clareza: será parte do conceito de acto confirmatório uma elemento volitivo do particular, no sentido de pedir uma reapreciação, ou, pelo contrário, a exigência deste acto por lei não impossibilita este de ser um acto confirmatório?[16]

Diz-se que a irrecorribilidade destes actos decorre da necessidade de garantir o objectivo da sanação dos actos anuláveis pelo decurso do prazo do recurso sem que o mesmo haja sido interposto.

Mais uma vez – e justificadamente, pela sua doutrina ter marcado todo o direito administrativo português – referimos a posição de Marcello Caetano[17]: este autor insere os actos confirmativos de actos executórios numa excepção à regra de que os actos definitivos são executórios. Assim, estes actos confirmativos são definitivos mas não executórios. No acórdão de 24 de Abril de 1970 o STA considera que o acto continua a ser confirmativo quando novos fundamentos são dados.

A jurisprudência insiste na inimpugnabilidade do acto confirmativo. No entanto, em casos em que o acto confirmativo não foi impugnado a tempo. Caso o tenha sido, pode ser impugnado também o acto confirmativo, mas resulta algo supérfluo, como refere o autor (

Passando agora à breve análise comparada, Satta[18], em Itália, resume os atti confermativi com o brocardo sic et simpliciter. Diz que estes actos, por apenas confirmarem o acto precedente, não trazendo nada de novo ao mundo jurídico, não são impugnáveis. Sandulli, no mesmo país, refere-os como actos que consistem “nella semplice rinnovazione non innovativa”. Exclui, no entanto, destes actos, aqueles que indo no mesmo sentido do acto anterior, o fazem com uma motivação diferente[19].

Já no tomo seguinte estuda a impugnabilidade desses mesmos actos, indicando decisões jurisprudenciais apontando no sentido da sua inimpugnabilidade, com justificação no facto de que devem poder ser impugnados os actos a partir do conhecimento suficiente do seu conteúdo, e o acto confirmativo apenas se limitar a reforçar o acto anterior[20] - portanto, o acto a impugnar seria o acto confirmado.

Ainda em Itália, Giannini[21] distingue o acto confirmativo próprio do impróprio. O primeiro seria aquele no qual um decisor, com dúvidas sobre a argumentação do decisor anterior, reabre o procedimento, pondera de novo os interesses, e decide que o procedimento adoptado era bom, confirmando-o. A confirmação imprópria é um produto da jurisprudência, para impedir a tentativa de impugnar actos confirmativos, na senda do Conselho de Estado. [22]

Laso fala do acto confirmativo apenas face a actos que padecem de algum vicio, e ficam assim convalidados[23] após a confirmação. O sistema em análise era o uruguaio.

Já na Grécia, os actos confirmativos são definidos por Stassinopoulos[24] de forma semelhante à doutrina referida a propósito do sistema italiano. Acrescenta, todavia, que carecem de efeitos jurídicos – fica a pergunta: porquê a sua existência? – e que não são susceptíveis de recurso por abuso de poder. Existem, todavia, casos em que este autor considera que estes actos podem ser executórios, como aqueles em que existe uma nova análise do caso, por apresentação, por exemplo, de novos documentos, o que levanta a questão de estes serem realmente actos confirmativos, parecendo a resposta dever ser negativa.

Em Espanha, Alfonso[25] enquadra os actos confirmatórios no artigo 28.º LJCA, que os exclui do recurso contencioso administrativo[26]. Para este autor, os actos confirmativos, assim como os actos reprodutórios, integram uma categoria jurisprudencialmente concebida sobre o principio do favor actiones, interpretada de uma maneira muito restrita, que faz com que apenas seja considerado como acto confirmatório aquele que seja absolutamente idêntico em todos os aspectos, ao acto confirmado. O raciocínio surge analogicamente com o art. 1.252 Cc, que exige perfeita identidade material para caso julgado, entre as coisas, as causas, as pessoas dos litigantes e a qualidade em que o foram.

Várias decisões jurisprudenciais são citadas, e a conclusão final é a seguinte: para que o acto seja confirmatório é necessário que a) existe identidade de contexto, e das circunstâncias procedimentais entre ambos; b) os dois actos devem referir-se aos mesmos factos e produzir-se sobre os mesmos fundamentos jurídicos, c) o segundo acto deve ter precisamente por objecto as mesmas pretensões do primeiro acto e os mesmos interessados e d) o conteúdo do segundo acto não deve conter declarações essenciais distintas do primeiro.

Aparte de todas as questões doutrinárias, ou do porquê da solução escolhida, o CPTA permite a impugnação de actos meramente confirmativos. Retira-se esta conclusão, imediatamente, do artigo 53.º do referido diploma estatuir que apenas em casos específicos pode a impugnação destes actos ser rejeitada.

O primeiro problema é compreender se a expressão “só pode ser rejeitada” significa que apenas nestes pode – no sentido de “tem de” - ser rejeitada (a impugnação, entenda-se) ou se, mesmo perante estes casos, existe apenas uma possibilidade discricionária de rejeição.

A solução, salvo melhor entendimento, terá de ser a primeira. Nestes casos deve ser rejeitada – isto é, em termos analíticos (algo normativistas, porventura) estamos perante uma norma impositiva, cuja configuração seria algo como “Nos casos das alíneas a), b) e c) a impugnação dum acto confirmatório é proibida. Isto porque o contrário violaria o princípio da igualdade, pois que face a situações semelhantes o seu tratamento seria diferente. O argumento, pode dizer-se, não é definitivo, no sentido de não ser passível de crítica. No entanto, serve como critério de desempate entre ambas as teses, pois nada mais parece ser invocável, dado o argumento literal não resolver a questão para nenhum dos lados.



[1] A referência é, obviamente, e na senda do que muitos fizeram após o lançamento da obra, ao Taking Rights Seriously de Dworkin, e não uma qualquer crítica a outras visões do acto confirmatório.

[2] Falamos aqui a chamada defeasibility (derrotabilidade) na sua vertente fáctica, de avanço contínuo do mundo do ser, e da constante dificuldade, por parte do mundo do dever ser, para o acompanhar. Cfr., por exemplo, Duarte, David, Rebutting Defeasibility as Operative Normative Defeasibility, in Liber Amicorum José de Sousa Brito, Coimbra, 2009, pp. 73 e ss.

[3] A referência é ao The Concept of Law (O conceito de Direito, na tradução portuguesa da Fundação Calouste Gulbenkian). Também neste sentido, chamando-lhes actos secundários, Amaral, Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Tomo II, pp. 264.

[4] Cfr. Reine Rechtslehre (Teoria Pura do Direito na tradução portuguesa de Baptista Machado)

[5] Amaral, Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Tomo II, pp. 268.

[6] Almeida, Mário Aroso de, O novo regime do processo nos tribunais administrativos, 3ª edição revista e actualizada, Almedina, pp. 155 e ss. Ver ainda Amaral, Freitas do, Direito Administrativo, Vol. IV, policopiado, Lisboa, 1988, pp. 153 e ss.

[7] Cfr. art. 120.º do Código de Procedimento Administrativo – “são actos administrativos as decisões dos órgãos da Administração que ao abrigo de normas de direito público visem produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta”

[8] Cfr. a definição de acto administrativo da nota anterior.

[9] O que não deixa de ser algo circular: entender um “acto” como acto devido a características processuais, quando o normal seria entender um “acto” como acto ou não e, daí, extrair as consequências processuais.

[10] Silva, Vasco Pereira da, Em busca do acto administrativo perdido, Colecção Teses, 1998, Almedina, Coimbra, pp. 593 e ss.

[11] Andrade, Vieira de, Justiça Administrativa (Lições), Almedina, 6ª edição 2004, pp. 207 e ss., em especial p. 212.

[12] Engisch, Karl, Introdução ao pensamento jurídico, traduzido por Machado, J. Baptista, Fundação Calouste Gulbenkian, 10ª edição, pp. 311 e ss

[13] Oliveira, Mário Esteves, Direito Administrativo, Vol. I, Almedina, Coimbra, 1984, 2ª reimpressão, pp. 410

[14] Machete, Rui Chancerelle de, O acto confirmativo de acto tácito de indeferimento e as garantias de defesa contenciosa dos administrados, edições Ática, Lisboa, 1973, in Estudos de Direito Público em honra do Professor Marcello Caetano, especialmente pp. 26 e ss.

[15] Correia, Sérvulo, Noções de Direito Administrativo, Editora Danúbio, Lisboa, 1982, pp. 346 e ss.

[16] Mais uma vez, repetimos: a questão não é tanto aqui uma despicienda discussão terminológica, porque o modo como enquadrarmos estes actos determinarão se podem ou não ser impugnados. O que, por si só, já parece merecer a atenção das páginas dedicadas ao tema.

[17] Caetano, Marcello, Manual de Direito Administrativo, Vol. I, Almedina, Coimbra, 10.ª edição, 3.ª reimpressão, revista e actualizada por Amaral, Freitas do, 1984, pp. 443 e ss.

[18] Satta, Filippo, Giustizia amministrativa, CEDAM Padova, 1986, pp. 190 e ss.

[19] Sandulli, Aldo M., Manuale di Diritto Amministrativo, XV edizione, Jovene Editore, Napoli, 1989, Tomo I, pp. 708 e 709.

[20] Op. Cit., Tomo II, pp. 1224

[21] Giannini, Massimo Severo, Diritto Amministrativo, Volume Secondo, Terza Edizione, pp. 560 e ss.

[22] Semelhante, Virga, Pietro, Diritto Amministrativo, Atti e ricorsi, Seconda edizione riveduta e aggiornata, Giuffrè Editore, Milano, 157, 331

[23] É o exemplo de Laso, Enrique Sayagues, Traité de Droit Administratif, traduzido por Aicardi, Simone, Centre Français de Droit Comparé, 1964, pp. 511 e ss

[24] Stassinopoulos, Michel D., Traité dês actes administratifs, Athénes, 1954

[25] Alfonso, Luciano Parejo, Derecho Administrativo – Instituciones generales, Ariel Derecho, 2003, 1ª edición, pp. 905 e ss.

[26] A formulação do artigo é a seguinte:

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