sexta-feira, 23 de abril de 2010

Recurso Hierárquico Necessário

Actualmente, e após a reforma do contencioso administrativo no sentido da sua subjectação, o acto administrativo tem que ser entendido em sentido amplo. Quer isto dizer que compreende qualquer decisão destinada à produção de efeitos jurídicos numa situação individual e concreta (art. 120º CPA). Já não se deve entender o acto administrativo como sendo um acto definitivo e executório, manistação da autoridade da Administração,como entendia o Prof. Marcello Caetano mas, pelo contrário, deve abranger quer as actuações agressivas como as prestadoras ou infra-estaduais da Administração.
No que respeita aos actos administrativos impugnáveis temos, actualmente, uma realidade com contornos mais amplos. Assim sendo, actos administrativos são todos os que produzem efeitos jurídicos, mas impugnáveis contenciosamente são os que se apresentem como susceptíveis de afectar posições subjectivas dos particulares.

Verifica-se, deste modo, que com a reforma do contencioso administrativo ocorreu uma “abertura do contencioso administrativo”, concretizada nos arts. 202º e ss CRP e 268º/4 e 5 CRP, baseada na ideia de que a todo o particular deve corresponder uma tutela judicial e efectiva.
Ocorreu, então, um alargamento no que respeita à impugnabilidade dos actos administrativos, a qual passa a ser determinada em função da eficácia externa e da lesão dos direitos dos particulares (art.51º CPTA).
Ao nível constitucional o Direito Fundamental de impugnação de actos administrativos lesivos dos particulares, no âmbito de um contencioso administrativo juisdicionalizado, tendo este sobretudo uma natureza subjectiva, destinado a garantir uma utela integral e efectiva dos particulares encontra-se consagrado no art.268º/4.

Aspecto particularmente importante, actualmente, é a possibilidade de controlo judicial imediato dos actos dos subalternos, também densificado no art.268º/4 CRP. Com esta alteração, afastou-se a exigência de um recurso hierárquico necessário, o que de acordo com o Prof. Vasco Pereira da Silva tornou esta figura inconstitucional.
Veja-se que o Autor sempre defendeu a inconstitucionalidade da regra do recurso hierárquico necessário, considerando que este viola os princípios constitucionais da plenitude da tutela dos direitos dos particulares (art.268º/4), o princípio da separação entre Administração e Justiça, por se fazer precludir o direito de acesso ao tribunal em resultado da não utilização de uma garantia administrativa e o princípio da efectividade de tutela.
Deste modo, o Autor entende que o recurso hierárico necessário é inconstitucional sendo que não deve existir entre uma lesão e o acesso aos tribunais um hiato temporal; além de que o art.268º/4 CRP permite ao particular recorrer ao tribunal para tutelar os seus direitos. Como tal, parece daqui resultar, em jeito de conclusão, o afastamento da necessidade de recurso hierárquico necessário ou de qualquer outra garantia administrativa, visto que o particular pode aceder de imediato à via contenciosa, independentemente de ter feito uso da via graciosa. De qualquer modo, ainda que o particular decida fazer uso da via administrativa, isso não pode condicionar a faculdade de suscitar a apreciação jurisdicional do litígio. Portanto, o Autor considera que todas as garantias administrativas são facultativas, não dependendo delas o acesso ao juiz.

Contudo, esta visão pode ser contraposta com uma outra, que a meu ver parece preferível, com o devido respeito.
É certo que actualmente o CPTA não exige que os actos administrativos hajam sido objecto de prévia impugnação administrativa para que possam ser objecto de impugnação contenciosa. Dos arts. 51º e 59º/4 e 5 CPTA decorre então que, por regra, a utilização das vias de impugnação administrativa não é necessária para aceder à via contenciosa.
Portanto, na ausência de determinação legal em sentido contário, deve entender-se que os actos administrativos com eficácia externa são imediatamente impugnáveis perante os Tribunais Administrativos.

A questão que se suscita é que em casos expressamente previstos na lei e por decisão do legislador, existem decisões administrativas que continuam a estar sujeitas à impugnação administrativa necessária.
Perante esta situação, acompanhando o Prof. Vieira de Andrade e o Prof. Aroso de Almeida, deve entender-se que quando a lei o previr, continua a aplicar-se o recurso hierárquico necessário, tendo existido apenas uma inversão da regra, no sentido em que passámos para um recurso facultativo, entendendo-se que em determinados casos, a impugnação administrativa já não é uma diligência indispensável à posterior impunação judicial, mas apenas uma tentativa de levar a própria Administração a satisfazer a pretensão do interessado.
Assim sendo, quando a lei o prevê, este tem obrigatóriamente que ser observado, sob pena de já não ser mais possível o acesso à via judicial.
Devemos ainda ter pesente que a principal consequência da interposição de um recuso hierárquico é a suspensão da eficácia do acto recorrido (at.59º/4 CPTA e arts. 163º/1 e 170ºCPA), o que efectivamente pode configurar-se como sendo uma vantagem. Ora vejamos: quando utilizada, o prazo para impugnação contenciosa só volta a correr depois da decisão do seu pedido de reapreciação do acto administrativo e é um meio de reacção mais fácil e barato, proporcionando vantagens práticas, sendo que o recurso hierárquico obriga a que o superior hierárquico se pronuncie sobre o caso, evitando a impugnação judicial e as despesas inerentes.

A questão já chegou várias vezes ao STA, o qual reconheceu que esta questão não é pacífica. Tem sido entendimento dominante que só existe inconstitucionalidade se o recurso imposto por lei para alcançar a via contenciosa restringir intolerávelmente o direito de acesso ao tribunal ou prejudicar desproporcionadamente a tutela judicial efectiva dos cidadãos.

Portanto, com a entrada em vigor do CPTA em 2004, que apenas se limitou a concretizar a norma constitucional (art.268º/4), a questão não sofreu alterações de fundo e, como tal, não há incompatibilidade com o preceito constitucional, mesmo que existam normas que ainda prevejam impugnações administrativas necessárias. Estas não restringem o acesso aos tribunais (art.20º CRP) nem violam o direito à tutela judicial efectiva (art.268º/4), sendo que o administrado pode sempre impugnar contenciosamente a eventual decisão desfavorável da impugnação administrativa.

Deste modo, tem sido entendimento do STA que o CPTA, concretizando preceitos constitucionais, procedeu a um alargamento da garantia do recuso contencioso a quaisquer actos administrativos lesivos de direitos e interesses dos administrados, invertendo a regra do recurso hierárquico necessário para o recurso facultativo, permitindo ao administrado só impugnar o acto contenciosamente, só impugnar administrativamente ou recorrer a ambos os mecanismos.

Considerando todos os argumentos apresentados, considero que se deve entender que, de facto, houve uma mudança de paradigma: a regra, actualmente, é o recurso hierárquico facultativo. Mas isso não põe em causa as disposições legais que ainda prevejam a impugnação administrativa necessária, até porque essas normas não foram objecto de revogação pelo CPTA e, como tal, considero que o recurso hierárquico necessário ainda desempenha uma função relevante no nosso ordenamento jurídico.


Telma Varelas, subturma 6

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