sexta-feira, 9 de abril de 2010

Comentário à Tarefa 1; Sistema de Administração Judiciária versus Sistema de Administração Executiva

Nas próximas linhas, tentarei caracterizar, numa perspectiva comparativa, os modelos de justiça administrativa, com origem na Grã-Bretanha e em França, respectivamente, o sistema judiciário e o modelo executivo, objectivando traçar as grandes linhas caracterizadoras dos dois sistemas e a sua evolução. Acrescentarei ainda, algumas breves notas sobre o modelo tradicional de justiça administrativa, que antecedeu os dois modelos em estudo, para além do aditamento de algumas considerações sobre a realidade portuguesa, necessariamente sintéticas, tendo em conta a índole do trabalho proposto. Esquematicamente, é este o plano de trabalho:

1. Modelo Tradicional; Caracterização Sintética
2. Modelo Judiciário Britânico
3. Modelo Executivo Francês
4. Suma Comparativa dos dois modelos em análise
5. Evolução e aproximação dos dois modelos em análise
6. Brevíssima observação da realidade portuguesa

1. Modelo Tradicional; Caracterização Sintética

No período que antecedeu a revolução Inglesa de 1688 e a revolução Francesa de 1789, vigorou na Europa, durante vários séculos e até ao fim do regime absolutista, um sistema administrativo totalmente diferente dos modelos que estudaremos neste texto, caracterizado, essencialmente, por duas grandes marcas. Desde logo, destaca-se a inexistência de uma separação de poderes, na medida em que, o poder executivo e o poder judicial, ou do ponto de vista funcional, a função administrativa e a função jurisdicional estavam a cargo do Rei, que era portanto o administrador máximo e o juiz máximo, nessa época. Um segundo aspecto a reter, relaciona-se com o facto da Administração Pública não se encontrar sujeita ao principio da legalidade, razão pela qual o sistema de garantias dos particulares era absolutamente ineficiente, não tendo estes meios de reagir contra eventuais ofensas cometidas pela Administração, já que, ainda que pudessem existir algumas normas, estas não seriam verdadeiramente normas jurídicas, mas antes instruções ou recomendações, não obrigatórias, e nessa medida, não vinculativas do poder real.
Com as Revoluções em Inglaterra e França, trilha-se um caminho na prossecução do objectivo de submeter a Administração Pública ao principio da legalidade, consagrando-se normas jurídicas, de carácter obrigatório e vinculativo, invocáveis pelos particulares em defesa dos seus direitos e interesses ofendidos pela Administração, numa palavra, dão-se os primeiros passos para a consolidação do conceito de Estado de Direito, alicerçado, numa ideia de separação de poderes, dividindo-se o poder supremo que até aqui se encontrava concentrado na figura do monarca em vários órgãos distintos, recortando-se com maior nitidez, a função jurisdicional relativa à função administrativa.


2. Modelo Judiciário Britânico

Em primeiro lugar, como grandes características desde modelo, a ideia da separação de poderes e do Estado de Direito, a primeira consubstanciada pela proibição do Rei resolver por si assuntos de natureza contenciosa por força da lei de abolição da Star Chamber de 1641 e pelo facto de não poder o monarca dar ordens aos juízes, mediante o Act of Settlement de 1701, a segunda ideia materializada por documentos importantes como a Magna Charta de 1215 ou o Bill of Rights de 1689 e pela submissão do Rei à common law, consagrando-se um verdadeiro, rule of law.

Uma outra marca deste modelo, é a grande descentralização existente, distinguindo-se a administração central e a administração local, que gozava de ampla autonomia face ao poder central e era dotada de inúmeros poderes.

Ainda, como característica deste modelo a submissão da Administração aos tribunais comuns e ao direito comum, quer dizer, a Administração Pública não só seria julgada pelos tribunais comuns, pelos tribunais que julgavam qualquer outra pessoa, como esses tribunais julgariam a Administração segundo o mesmo direito que era aplicado às relações entre particulares, em nome da ideia do império do direito.

Muito importante, a execução judicial das decisões administrativas, ideia que pode ser concretizada se dissermos que a Administração não pode executar as suas decisões de forma autónoma, ou seja, a Administração não pode impor a sua decisão a um particular que, por exemplo, não a acate, devendo, pelo contrário, recorrer a um tribunal para que seja este a decidir sobre a validade da ordem dada pela Administração e da conformidade ou desconformidade do não acatamento do particular dessa mesma ordem.

Uma última nota caracterizadora do sistema de administração judiciaria, relaciona-se com as amplas garantias jurídicas à disposição dos particulares, existindo a possibilidade dos particulares recorrerem para um tribunal para que este ordene a Administração a fazer algo ou a deixar de fazer algo, ou seja, no sistema Britânico os particulares dispunham de um sistema fortemente garantistico dos seus direitos e interesses legítimos.

Este sistema vigora nos países anglo saxónicos, influenciando ainda um conjunto de outros países, nomeadamente na América Latina.

3. Modelo Executivo Francês

Também no modelo Francês, existe a consagração do principio da separação de poderes, interpretado não poucas vezes, no entanto, de forma excessiva, utilizando-se como fundamento este principio basilar, para subtrair a Administração ao controlo jurisdicional, na esteira da premissa de que julgar a Administração é ainda Administrar, ao invés de se considerar que julgar é sempre julgar, e que essa função deve ser sempre adstrita aos órgãos jurisdicionais. Ainda assim, após este “pecado original”, nas palavras do Professor Vasco Pereira da Silva, depois de 1799, com o sistema de justiça reservada e a criação do Conselho de Estado, um órgão híbrido meio administrativo, meio judiciário, e, em especial, após 1872, com o sistema de justiça delegada, o principio da separação de poderes deixa de ser interpretado na perspectiva estrita e que conduzia à indiferenciação da função administrativa e jurisdicional, passando a ser entendido de forma mais aproximada daquela que conhecemos nos nossos dias, constituindo uma ideia basilar no conceito mais amplo de Estado Direito, marca essencial deste sistema executivo, materializada, entre outros elementos, pela DUDH de 1789.

No modelo administrativo executivo, existe uma profunda centralização, sendo o território francês dividido em 80 départements, mas chefiados por préfets de livre nomeação do Governo, para além de que os próprios municípios eram dirigidos por um Maire nomeado pelo Governo co-adjuvado por um conseil municipal, também nomeado, ambos na dependência do referido préfet, não gozando os municípios de uma autonomia administrativa e financeira suficiente para se poder falar de uma verdadeira descentralização, pelo contrário, cumpre afirmar que o modelo de tipo francês é profundamente centralizador, realidade enquadrada e entendida à luz do que era o momento histórico vivido nessa altura.

A administração vem a ser julgada por tribunais administrativos, e não por tribunais comuns, aplicando-se o direito administrativo – após a sua criação na sequência do caso Blanco, momento em que se reconhece a necessidade de criação de Direito Especial (Direito Administrativo) que julgasse os litígios em que a Administração Pública estivesse envolvida.

Neste sistema, existia um privilégio de execução prévia, ou seja, a Administração pode executar as suas decisões por autoridade própria, pode impor as suas decisões aos particulares sem ter que recorrer a um Tribunal, podendo empregar, pelo contrário, meios coactivos como seja a utilização da própria Polícia com a finalidade de obrigar o particular ao acatamento da decisão administrativa.

Este modelo consagra um sistema de garantias jurídicas dos particulares efectivadas por via de um Tribunal Administrativo que, no entanto, apenas pode anular o acto da Administração se este for ilegal, não podendo declarar nem as consequências dessa anulação, nem proibir a Administração de proceder de determinada forma nem condena-la a fazer algo, já que, se entendia que da mesma forma que os tribunais eram independentes da Administração, esta também o era em relação àquelas, pelo que, cabia à Administração decidir o se e o quando da execução das sentenças dos tribunais que anulavam os seus actos, ou seja, existiam garantias jurídicas dos particulares, mas, como anotaremos, na comparação entre os dois sistemas em análise, estas garantias jurídicas eram menos fortes do que o que sucedia no modelo administrativo judiciário ou de tipo britânico.

4. Suma Comparativa dos dois modelos em análise

Quanto às semelhanças, ambos os sistemas, assentam na ideia de Estado Direito e de Separação de Poderes, ainda que a interpretação deste último principio, varie, nos termos supracitados. Convergindo nestes dois aspectos, as divergências são bem mais notórias. Assim:

Enquanto o sistema de tipo francês é profundamente centralizado, o sistema britânico é descentralizador.

Em segundo lugar, no sistema de tipo francês temos uma dualidade de jurisdições, existindo ao lado dos tribunais comuns os tribunais administrativos, diversamente do que sucede no sistema de tipo britânico, em que existe unidade jurisdicional, submetendo-se a Administração, tal como os particulares aos tribunais comuns.

O Direito regulador da Administração é em França o direito administrativo, portanto, direito público, sendo que, em Inglaterra, o direito que regula a Administração Pública é o direito comum, essencialmente direito privado.

Em Inglaterra vigora a ideia da execução judicial das decisões administrativas, não podendo a Administração Publica impor as suas ordenas aos particulares que não as acatem por via de meios coactivos, devendo ser um Tribunal a ordenar o cumprimento ou não cumprimento dessas decisões. Diferentemente, em França, existe um privilégio de execução prévia, podendo a Administração obrigar por si ao cumprimento das suas decisões.

Em França, os tribunais administrativos apenas podem anular decisões ilegais das autoridades ou condena-las ao pagamento de indemnizações, em Inglaterra, a Administração Pública está sujeita nos mesmos termos dos particulares, à jurisdição dos Tribunais Comuns, pelo que, nesse sentido, existe um maior tutela das garantias dos particulares.

5. Evolução e aproximação dos dois modelos em análise

Esta breve exposição não ficaria completa se não aditássemos algumas notas, no sentido de afirmarmos que do confronto entre estes dois sistemas, bastante evidente num período anterior ao século XX, passámos para um período de aproximação entre estes dois modelos, precisamente no decorrer do século XX, aproximação essa que pode ser comprovada nos seguintes termos:

a) Em primeiro lugar, no que concerne à organização administrativa, a administração britânica adoptou um caminho centralizador, relativamente ao que sucedia anteriormente, desde logo pelo facto de se ter presenciado um enorme crescimento da burocracia central, a criação de diversos vários serviços locais do Estado e a transferência de inúmeras tarefas que anteriormente eram executadas por orgãos municipais para orgãos de índole mais ampla, como sejam os orgãos regionais, sujeitos com maior vigor à superintendência e tutela do Governo Central. Em sentido inverso, a administração francesa, foi perdendo o centralismo napoleónico que a caracterizava à entrada do século XX, aceitando uma maior autonomia dos corpos intermédios, a eleição livre dos órgãos autárquicos e mais recentemente uma transferência do poder do Estado Central para as regiões, portanto, trilhou-se um caminho de aproximação entre estes dois sistemas, na medida em que, o sistema judiciário de tipo britânico e o modelo executivo de tipo francês adoptaram caminhos inversos, o primeiro ficando mais centralizado e o segundo apostando numa maior descentralização o que provocou a já aludida aproximação.

b) Quanto ao controlo jurisdicional da Administração, o Professor Diogo Freitas do Amaral, não considera que tenha existido nenhuma aproximação dos dois modelos sub judice, na medida em que os Administrative Tribunals, que surgiram em grande número em Inglaterra, nada tenham que ver, por exemplo, com os tribunaux administratifs de França, já que a administração Inglesa continua sujeita ao controlo dos tribunais comuns; Por outro lado, um aumento da intervenção dos tribunais judiciais na relações entre a Administração e os particulares em França, não significa que o controlo da aplicação do Direito Administrativo tenha deixado de pertencer aos tribunais administrativos, mas apenas que existiu um aumento dos casos em que a Administração actua sob a égide do direito privado, e não à luz do direito público.

c) Nova aproximação no que respeita ao direito regulador da Administração, já que, em Inglaterra, por via do aumento do intervencionismo económico, na esteira do conceito de Estado Social, avolumaram-se as leis administrativas reguladoras da actividade do Estado na prestação dessas funções socializantes, e em França, a Administração teve de passar a actuar em diversos domínios sob a égide do direito privado, exemplificando-se, com o facto de as Empresas Públicas, por via da sua actividade económica, terem actuado em conformidade com o Direito Comercial, direito privado, portanto.

d) Também no que diz respeito à execução das decisões administrativas existe uma aproximação entre os dois sistemas. Assim, na Grã-Bretanha surgem os administrative tribunals, que não sendo autênticos tribunais administrativos, são orgãos administrativos independentes que decidem questões de direito administrativo, fazendo preceder as suas decisões de um procedimento que respeitam os princípios do contraditório e com o recurso para os tribunais comuns. Estas decisões são imediatamente obrigatórios para os particulares, não carecendo de qualquer homologação ou confirmação judicial, passando a dispor, alguns orgãos da Administração britânica de poderes análogos aos típicos do modelo executivo de tipo francês, como seja, o referido privilégio da execução prévia. Por outro lado, em sentido inverso, na experiência francesa, o Direito Administrativo daquele país passa a conceder aos particulares a possibilidade de obter a suspensão da eficácia das decisões unilaterais da Administração Pública o que na prática faz com que algumas das decisões da Administração só possam ser executadas se um tribunal administrativo, a pedido de um particular interessado, a tal não se opuser, razão pela qual, fica aqui, mitigada, a diferença entre os dois sistemas em análise neste ponto.

e) Quanto às garantias jurídicas dos particulares, embora se possa dizer que estas são mais amplas no modelo britânico, cumpre ressalvar que existe uma forte limitação no recurso a algumas figuras, numa primeira análise, ao dispor dos particulares. Noutro sentido, em França, os tribunais administrativos têm vindo a ganhar cada vez mais poderes face à Administração, podendo-se ir mais longe que a simples anulação de actos, nomeadamente, é possível condenar à pratica de determinado comportamento devido. Por outro lado, em 1963 criou-se o Mediateur, figura correspondente ao Provedor de Justiça.

Assim, cumpre dizer que existiu uma significativa aproximação entre os dois modelos, embora se conservem diferenças importantes, nomeadamente, porque em Inglaterra se mantêm uma unidade de jurisdições, sendo os tribunais comuns que fiscalizam a Administração e, contrariamente, em França, existe uma dualidade de administrações com a Administração submetida aos Tribunais Administrativos.

6. Brevíssima observação da realidade Portuguesa

Quanto à evolução do modelo organizativo em Portugal, adoptamos a proposta do Professor Vieira de Andrade, que divide em três fases essa evolução. Uma primeira fase, entre os 1832 e 1924, correspondente à época liberal é associada ao modelo francês, embora existam várias especificidades, como seja, o facto dos litígios relativos à actividade administrativa serem submetidos a orgãos de função administrativo que detinham uma competência decisória, funcionado, como verdadeiros tribunais, mas fora da ordem judicial, excepcionando-se, o período de 1835-1842 e 1892-1896 em que vigora um modelo judicialista de tribunais comuns. Uma segunda fase, correspondente ao período autoritário, que vai entre 1933 e 1976 em que se desenvolve um modelo judicialista mitigado, assinalando-se, que o contencioso era protagonizado a nível local, pelas auditorias administrativas e, a nível central, pelo Supremo Tribunal Administrativo, ou seja, por orgãos independentes na orgânica dos tribunais comuns, cuja natureza jurídica se discutia, pronunciando-se a favor da natureza administrativa destes orgãos, Marcello Caetano e Freitas do Amaral e a favor de uma natureza jurisdicional autores como Barbosa de Melo ou Afonso Queiró. Uma última fase, com actual Constituição, onde se institui um modelo judicialista, de contencioso integralmente jurisdicionalizado, atribuído a uma ordem judicial autónoma de competência especializada. Assim, numa primeira fase, em Portugal, vigorava um modelo administrativista ainda que mitigado, numa segunda fase um modelo judicialista mitigado e numa terceira fase um modelo judicialista puro.

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