sábado, 24 de abril de 2010

O entendimento constitucional do contencioso administrativo

Na determinação do modelo de justiça administrativa importa averiguar, numa perspectiva dinâmica, qual é o entendimento constitucional do contencioso administrativo, partindo do texto originário de 1976 e suas subsequentes alterações.

No preâmbulo da versão originária da Constituição de 1976 considera-se o Estado português como um Estado de Direito Democrático, o que pressupõe o princípio da legalidade administrativa, a subordinação da actividade administrativa ao controle jurisdicional e a atribuição de direitos fundamentais aos cidadãos. Por outro lado, integram-se os tribunais administrativos no poder judicial e verifica-se a consideração da obrigatoriedade e prevalência das decisões dos tribunais, actualmente consagrada no art. 205º, nº2, a par da consagração, no art. 20º, do direito de acesso à justiça. Quanto à sua qualificação, este direito constitui um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias – art. 17º -, com eficácia imediata.

O artigo 268º, nº4, tal como resultou das revisões de 1989 e de 1997, consagra um direito fundamental de natureza análoga e encerra uma discussão doutrinária sobre se a definitividade e executoriedade, enquanto requisitos da recorribilidade do acto administrativo - que permaneciam previstos no então artigo 25 da LPTA -, se mantêm, atendendo às alterações que este preceito foi sujeito.

Um acto definitivo seria aquele que fosse, simultaneamente, horizontalmente definitivo – acto final do procedimento administrativo -, verticalmente definitivo – praticado pelo órgão que ocupa a posição suprema na estrutura hierárquica – e materialmente definitivo – definidor de uma situação jurídica. Nestas existências é que consistia o princípio da tripla definitividade. A executoriedade consiste na susceptibilidade de execução coerciva por via administrativa, de actos exequíveis e eficazes.

A versão originária do actual artigo 268º, nº4 – o artigo 269º, nº2 – garantia o recurso contencioso, com fundamento na ilegalidade, contra quaisquer actos administrativos definitivos e executórios. O recurso contencioso estava dependente, primeiro, de um acto administrativo, segundo, de um acto administrativo cujos requisitos de definitividade e executoriedade estivessem preenchidos. Deste modo, o contencioso era manifestamente objectivo e limitado.

Com a revisão de 1982, o entendimento constitucional de um contencioso estrito de legalidade é alterado, ainda que de modo inibido ou indirecto. Para além de uma alteração a nível formal, que consistiu na consagração formal, no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa do Estado de Direito Democrático, alarga-se o âmbito da tipologia dos actos administrativos susceptíveis de recurso, através da consagração no nº3 do artigo 268º, de que a garantia funciona contra quaisquer actos administrativos, independentemente da sua forma. Na parte final do referido preceito insere-se a nova garantia contenciosa para reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido, o que representa um novo alargamento das garantias contenciosas.

Destas alterações é visível a evolução subjectivista, do entendimento do modelo de contencioso que abrangia o denominado recurso contencioso de anulação, desprendendo-se o recurso do monopólio da objectividade, imposto pela ditadura do acto administrativo. Com efeito, a redacção do novo art. 268º, nº3, consagra uma tutela jurisdicional autónoma, independente da existência de actos de autoridade, ou seja, contempla um contencioso de plena jurisdição, abrangendo os contratos e a responsabilidade contratual e extracontratual da Administração.

Com a revisão de 1989 o entendimento constitucional continua a sublinhar a vertente subjectivista do contencioso administrativo. Com esta revisão são eliminadas as referências constitucionais à definitividade e executoriedade como condições necessárias de procedibilidade do recurso. A recorribilidade do acto administrativo recai directamente na lesão do particular e não nas características formais da definitividade e executoriedade, não se excluindo, portanto, o recurso de actos que não obedeçam a este tipo. A alteração constitucional pretendeu assegurar o princípio do recurso contencioso dos actos lesivos dos direitos ou interesses dos particulares: o que se quer é que seja impossível negar um recurso contencioso contra um acto administrativo – Professor Rogério Soares. No entanto, o Professor Rogério Soares considera que o recurso contencioso imediato ou directo é inadmissível, ao contrário do que o Professor Vasco Pereira da Silva defende. Em 1989, consagra-se, assim, como causa de pedir a lesão de direitos ou interesses legalmente protegidos.

O artigo 268º, nº5 – a revisão de 1997 fundiu os nºs 4 e 5, no nº4 -, consagra o princípio da garantia do direito de acesso à justiça administrativa para tutela efectiva das posições jurídico-administrativas dos particulares. Esta necessidade em assegurar uma protecção jurídica plena e efectiva dos cidadãos, recentra o critério da recorribilidade, que deixa de ser aferido pelas características do acto definitivo e executório, na lesão dos particulares, no âmbito da relação jurídico-administrativa. O que é determinante para a impugnação do acto administrativo é a verificação da sua susceptibilidade em provocar a lesão dos direitos ou interesses dos particulares.

A revisão constitucional de 1989 veio constitucionalizar a jurisdição administrativa, consagrando no artigo 211º, nº1, alínea b) – actualmente o artigo 209º - a existência do Supremo Tribunal Administrativo e dos demais tribunais administrativos, deste modo retirando a sua efectiva existência da dependência da vontade do legislador ordinário, como parecia decorrer do texto anterior. A competência dos tribunais administrativos é definida no artigo 214º, nº3 – actualmente no artigo 212º -, através da conexão material com a relação jurídico-administrativa.

Com a revisão de 1997 são alteradas, de novo, as garantias dos cidadãos perante a Administração, desenvolvendo-se a criação de um contencioso de plena jurisdição administrativa e de subjectivização de um sistema de natureza objectivista. Do novo enunciado constitucional, destaca-se a consagração expressa do princípio da tutela jurisdicional efectiva – na parte inicial do nº4 – que abrange os vários meios de acesso à justiça administrativa. Esta redacção veio atribuir uma protecção qualitativamente acrescida às garantias contenciosas, nomeadamente a acção para o reconhecimento de direitos ou interesses legalmente protegidos e a impugnação de actos administrativos lesivos desses direitos ou interesses. Por outro lado, é garantido um novo meio processual para a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos, bem como a adopção de medidas cautelares adequadas – artigo 268º, nº4, in fine. A admissibilidade de medidas cautelares em direito administrativo, assim como a impugnação de normas regulamentares – previstas no nº 5 do referido preceito -, contribuiu para o desenvolvimento de resultados garantísticos importantes para a posição subjectiva dos particulares na relação jurídico-administrativa.

Concluindo, o conceito de lesividade de direitos e interesses legalmente protegidos proporciona a cláusula de acesso à justiça administrativa, afastando os requisitos da definitividade e executoriedade. O que é relevante é a efectiva lesão da esfera jurídica do particular, e não a constatação se o acto administrativo é ou não definitivo e executório em sede da respectiva impugnação. O que importa é a sua capacidade – efeitos externos do acto – de perturbar de modo desfavorável – produzindo uma ofensa não justificada – posições jurídicas substantivas. Por fim, do nº4 do referido artigo, é retirada a alusão à ilegalidade como fundamento do recurso, dada a confirmação de um modelo de contencioso subjectivista, deste modo afastando-se primazia à verificação da ilegalidade, e com base na hierarquização discursiva dos meios processuais, que inverteu-se em relação à redacção anterior.


Marisa Ribeiro dos Santos A6 16781

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