domingo, 18 de abril de 2010

A legitimidade e o interesse processual

A legitimidade processual que se encontra prevista nos artigos 9º e seguintes do Código de Processo dos Tribunais Administrativos, doravante CPTA, é um pressuposto processual específico do Contencioso Administrativo. Este pressuposto é tratado de forma autónoma no âmbito do CPTA, esta autonomia é justificada pela relevância das especificidades que, a diversos níveis, o contencioso administrativo apresenta nesse domínio. Tendo em conta a parte inicial do art.9º/1 do CPTA, a matéria da legitimidade activa não se encontra apenas regulada no artigo supra citado, mas também no art.40º, respeitante à legitimidade em acções relativas a contratos, e nos arts. 55º, 68º, 73º e 77º, referentes às pretensões que se fazem valer pela via da acção administrativa especial. As soluções que encontramos no art.9º/1 e 2 do CPTA retomam as que resultam dos arts. 26º e 26º - A do Código do Processo Civil, doravante CPC, respectivamente. O art. 9º/1 do CPTA tem correspondência com o art.26º/3 do CPC, que assume a legitimidade activa como um pressuposto processual e não como uma condição de procedência de acção, cuja titularidade se afere, por referência às alegações produzidas pelo autor (“…quando alegue ser parte…”). Depois a regra em qualquer relação jurídica controvertida é a de que a legitimidade para discutir em juízo corresponde a quem alegue ser parte nela: (“…o autor é considerado parte legítima quando alegue ser parte na relação material controvertida”).
A legitimidade pode caber a particulares ou a entidades públicas, ambos podem envolver-se em relações jurídico-administrativas cujo destino tenham interesse em submeter à apreciação dos tribunais administrativos.
As disposições especiais em relação ao regime geral, encontramo-las no art.9º/2 do CPTA que à semelhança do que acontece no art.26º - A do CPC, determina a extensão da legitimidade processual a quem não alegue ser parte numa relação material que se proponha submeter à apreciação do tribunal. Contudo o preceito não utiliza a expressão referida, opta antes por referir um conjunto de entidades, tais como os cidadãos que no âmbito do contencioso administrativo podem exercer o seu direito de acção popular para defesa de “valores e bens constitucionalmente protegidos como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais”, o Ministério Público e as autarquias locais. Assim no artigo citado, podemos afirmar estar perante uma verdadeira extensão da legitimidade, visto que se reconhece legitimidade ao Ministério Público, às autarquias locais, às associações e fundações defensoras dos interesses em causa, e em geral a qualquer pessoa singular, enquanto membro da comunidade.
No que concerne à legitimidade passiva, o critério é também o da relação material controvertida, considerando-se como partes não só as entidades públicas mas também os indivíduos ou pessoas colectivas privadas. Até a este momento, o que assistimos é a uma relação apenas entre dois sujeitos, contudo no novo contencioso administrativo assistimos a uma multilateralidade das relações administrativas, ou seja, a relação entre a Administração e os particulares não é bipolar, na medida em que devem também ser chamados a juízo todos os sujeitos da relação multilateral. Assim, neste âmbito o legislador consagrou algumas regras relevantes, tais como: art.12º; art.48º e art.57º do CPTA.
Atendendo ao que acima foi explicitado no que diz respeito às regras gerais e tendo em conta as palavras do Prof. Vasco Pereira da Silva na sua obra “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, a legitimidade constitui um elo de ligação entre a relação jurídica substantiva e a processual, destinando-se a trazer a juízo os titulares da relação material controvertida, a fim de dar sentido útil às decisões dos tribunais.
No que diz respeito à legitimidade na acção administrativa especial qualificada em razão do pedido de impugnação, assegura-se que o contencioso administrativo proporcione a mais efectiva tutela a quem quer que se lhe dirija, admitindo não só os indivíduos em defesa dos seus direitos e interesses particulares, mas também o Ministério Público, as entidades públicas, as associações cívicas e os próprios cidadãos, em defesa dos interesses públicos, colectivos e difusos. Esta é a linha que inspira o tema da legitimidade activa, no que toca às pretensões que devem ser accionadas pela forma da acção administrativa especial, que consta dos arts. 55º; 68º, 73º e 77º do CPTA. Aqui o que vou analisar é o art. 55º alínea a) do CPTA, quanto à legitimidade para a impugnação de actos administrativos, pois será relevante para a questão que irei tratar mais adiante, sobre a distinção entre legitimidade e interesse processual.
Nos termos do art.55º alínea a) podemos então considerar actores processuais: quem alegue ser titular de um interesse directo e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo acto nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos.
A utilização da expressão “interesse directo e pessoal”, em contraposição à ideia de lesão dos direitos ou interesses legalmente protegidos, aponta no sentido de que a legitimidade individual para impugnar actos administrativos não tem que se basear na ofensa de um direito/interesse protegido, mas basta que o acto esteja a provocar consequências desfavoráveis na esfera jurídica do autor. No artigo citado, faz-se apelo a duas questões distintas, tem legitimidade a pessoa que alegue ser titular do direito ou interesse e o seu interesse radica na alegação de ter sido lesada nesse seu direito ou interesse, assim o interesse é pessoal (legitimidade processual) e directo (interesse processual).
Depois de breves traços acerca da legitimidade, parece-me relevante discutir a questão da legitimidade não se confundir com o interesse processual, ou interesse em agir.
Assim não devem restar dúvidas quanto à questão de se saber que quem está em juízo é parte na relação material, tendo em conta os seguintes exemplos: o impugnante que alegue ser proprietário de um prédio, relativamente a actos praticados pela Administração no âmbito do procedimento de declaração de utilidade pública desse prédio; ou no funcionário que alegue ser arguido num procedimento disciplinar respeitante a factos por si próprio praticados.
No que toca à existência de uma necessidade efectiva de tutela judiciária, ou seja, de factos objectivos que tornem necessário o recurso à via judicial, já se questiona a sua presença.
Pensando nos exemplos referidos, os actos que determinam a abertura do procedimento disciplinar ou do procedimento de declaração de utilidade pública, tanto o proprietário como o arguido, são interessados, e por isso têm legitimidade para figurar como partes no procedimento, no entanto parece ser possível afirmar que não têm interesse processual em impugnar esses actos, visto que se trata de actos contra os quais eles ainda não têm uma necessidade de tutela que justifique o recurso à via judicial.
O requisito do interesse processual sempre relevou no Contencioso, em domínios como o da impugnação de actos administrativos, designadamente para o efeito de se aferir da actualidade do interesse dos recorrentes particulares, em termos de saber se os recursos contenciosos eram interpostos contra actos administrativos eficazes que lhes infligissem lesões efectivas, que não apenas potenciais ou hipotéticas (interesse directo), e uma vez esgotadas as eventuais vias de impugnação administrativa necessária.
O pressuposto do interesse processual é chamado com o novo contencioso administrativo, a desempenhar um papel muito relevante. Neste sentido, assistimos a um conjunto de argumentos. O mais relevante é o facto de o novo sistema colocar à disposição dos eventuais interessados um conjunto de novas vias de acesso à justiça administrativa que não têm carácter impugnatório e portanto, não desempenham uma função reactiva. A questão não se coloca no campo da necessidade de tutela, e portanto, o interesse em agir de quem se veja forçado a defender-se por reacção contra intervenções que agridam a sua esfera jurídica, mas sim no campo de prevenir eventuais agressões futuras ou de obter pronúncias judiciais que se limitem a afastar equívocos e riscos só potencialmente lesivos.
Outro argumento é o de que a partir da existência de meios processuais adequados à obtenção de certos resultados, deixa de haver interesse processual na utilização de outros meios, que do ponto de vista da efectividade da tutela e da economia processual não se apresentam tão adequados.
O CPTA não consagra, em termos gerais, o interesse em agir como um pressuposto processual, mas contém uma referência expressa a este requisito, no art.39º, a propósito de situações em que o problema reconhecidamente se coloca acuidade, e que se prende com acções meramente declarativas ou de simples apreciação, que visam acorrer a lesões efectivas, resultantes da existência de situações graves de incerteza objectiva, ou a ameaças de lesão, resultantes do fundado receio da verificação de condutas lesivas num futuro próximo, determinadas por uma incorrecta avaliação da situação existente.
Também nas acções de condenação à prática ou abstenção de condutas no futuro, se coloca o problema da existência de interesse em agir, embora a letra do preceito não contemple esta situação, não se pode deixar de considerar aplicável o regime do art.39º do CPTA.
Para além da situação supra referida, também no art.55º/1 alínea a) do CPTA que já foi analisado neste trabalho, assistimos a uma manifestação do interesse processual, quando o artigo exige um carácter directo ao interesse individual para impugnar actos administrativos. Quando se exige que o interesse do impugnante seja directo, está a fazer-se apelo à ideia de que o impugnante deve estar constituído numa situação de efectiva necessidade de tutela judiciária, faz-se também alusão à hipótese de o impugnante “ter sido lesado pelo acto nos seus direitos ou interesses”. Aqui faz-se apelo a duas ideias: possui legitimidade quem alegue ser titular do direito ou interesse e o seu interesse processual radica na alegação de ter sido lesado nesse seu direito ou interesse, circunstância da qual advém o interesse directo (interesse processual) em demandar. Relembrando os exemplos atrás referidos, não basta que o impugnante alegue ser proprietário de um prédio em relação ao qual corre um procedimento de declaração de utilidade pública ou que o funcionário alegue ser arguido num procedimento disciplinar: a admissibilidade da utilização da via impugnatória pressupõe a ocorrência de uma circunstância concreta que determine a necessidade de recorrer aos tribunais.
Assim, um mesmo acto administrativo pode ser impugnado por certos interessados e já não por outros, embora tenha a mesma natureza objectiva. Se um acto administrativo pode ser impugnado por alguém, ele não pode deixar de ser qualificado como impugnável. A questão em causa, é a de ver em cada caso concreto, se quem se propõe a impugnar esse acto se apresenta como parte legítima e por outro lado, como estando colocado em situação que, do ponto de vista do interesse em agir, fundamente a necessidade de recorrer à via judicial.
O art.54º do CPTA, diz respeito a actos administrativos ineficazes em que se podem constituir situações de interesse em agir que justifiquem a impugnação. O artigo citado refere-se ao interesse processual em demandar, no caso em impugnar actos administrativos ineficazes. Também neste artigo e à semelhança do que sucede com o art.39º, temos em vista situações em que o problema da existência de um interesse em agir se coloca com alguma precaução, na medida em que se pode dizer que há uma presunção de que não existe interesse directo, actual em impugnar actos administrativos que ainda não produzem efeitos na ordem jurídica porque (ainda) não lesaram ninguém.
Tal como no art. 39º, também o art.54º tem em vista situações de lesão efectiva e situações de ameaça de lesão. As primeiras resultam de condutas ilegítimas, destituídas de fundamento jurídico, as segundas resultam do fundado receio da verificação num futuro próximo, de circunstâncias lesivas.
Ainda é no plano da existência de interesse processual que fundamente a necessidade de recorrer à via judicial que se coloca a questão de saber se o autor que impugna um acto administrativo procedeu à prévia impugnação desse acto perante o órgão administrativo competente, nos casos em que lei especial faça depender o recurso à via judicial da prévia utilização de mecanismos de impugnação administrativa. O CPTA não exige que os actos tenham sido objecto de prévia impugnação administrativa para que possam ser objecto de impugnação contenciosa. A solução que se encontra nos artigos 51º e 59º nº 4 e 5 do CPTA é a seguinte: a utilização de vias de impugnação administrativa não é necessária para aceder à via contenciosa. E assim também não é necessário, para haver interesse processual no recurso à impugnação perante os tribunais administrativos, que o autor demonstre ter tentado infrutiferamente obter a remoção do acto que considera ilegal por via extrajudicial. No entanto existem determinações legais avulsas que consagram as impugnações administrativas necessárias, e como o CPTA não tem alcance para as revogar, elas podem desaparecer se existir uma disposição expressa que determine a extinção de todas elas. Na ausência de determinação legal expressa em sentido contrário, todos os actos administrativos com eficácia externa podem ser objecto de impugnação contenciosa. No caso de estar expressamente previsto em leis avulsas, as decisões administrativas continuam a estar sujeitas a impugnação administrativa necessária. Nestes casos, a lei faz depender o reconhecimento de interesse processual ao autor, ou seja, o reconhecimento da sua necessidade de tutela judiciária, da utilização das vias legalmente estabelecidas para tentar obter a resolução do litígio por via extrajudicial.
Se um interessado impugnar um acto administrativo perante os tribunais sem ter feito uso da impugnação administrativa necessária que a lei previa expressamente, a sua pretensão deve ser rejeitada porque a lei não lhe reconhece o interesse processual, que no caso, se deveria sustentar na demonstração de ter tentado infrutiferamente obter o resultado pretendido pela via extrajudicial legalmente estabelecida.
O problema aqui é o de aceder à justiça, como demonstra a imposição de impugnações administrativas necessárias poder ser motivada com a exigência do requisito do interesse processual, por dois propósitos, por um lado para evitar que as pessoas sejam precipitadamente forçadas a vir a juízo, por outro lado para não sobrecarregar com acções desnecessárias a actividades dos tribunais, cujo tempo é escasso para atender a todos os casos em que é realmente indispensável a intervenção jurisdicional.

Sandra Tenrinho, subturma2

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